Unidos do Cabuçu – Sinopse 2018

CARNAVAL DE 2018

SINOPSE DO ENREDO

Um Reinado Preto Brasileiro

Unidos do Cabuçu - Logo do Enredo - Carnaval 2018

 

Início de conversa…

“Hoje é manhã de carnaval (ao esplendor)

As escolas vão desfilar (garbosamente)

Aquela gente de cor com a imponência de um rei, vai pisar na passarela…”

 

A Unidos do Cabuçu tem a hora e o prazer de bailar na avenida em 2018, ladeada de seus ternos e pretos-velhos, contando a história do Congado brasileiro.

A história narrada por um desses pretos-velhos reconta os caminhos da tradição da encenação e festejos da coroação do rei do Congo, desde sua celebração na África, passando por seu renascimento no Brasil até a ressignificação dessa tradição mantida viva pelos descendentes de africanos em nosso país.

Em um momento marcado pelo sufocamento da cultura popular e pela intolerância religiosa, nossa mensagem é de esperança para que as expressões afro-brasileiras, afro-ibéricas, ameríndias, caboclas e BRASILEIRAS nunca caiam no esquecimento.

“Negro, Acorde! É hora de acordar!

Não negue a raça, torne toda manhã dia de graça…”

(Dia de Graça, Candeia)

 

Versado da arte

 

Salve o Cabuçu!

 

A bandeira do aviso já está no alto

O povo preto está preparado

Ela anuncia a preparação do auto

Será um novo dia de coroação

 

A bandeira branca já está no alto

Ela balança pelo vento do tempo,

Da resistência e do passado.

 

Segue o negro cortejo pedindo licença

Avança entre as ruas levando os corações

Batida de caixa, doce acorde do violão

Pandeiro, tarol, tamborim e acordeom

 

Eles falam de fé, de amor, da liberdade do calvário

Eles cantam São Benedito e Nossa Senhora do Rosário

 

 “Papai veio de Angola, m’mãe veio de Angolá

Eu sou filho de mãe preta, eu sou da beira do mar”

 

Preto Véio que dizia em uma de suas cantigas

Que no Congo era nobre a mania de festejar

Em tributo ao Manicongo, o povo saía pra congar

 

“Vou contar-lhe uma história, peço, preste atenção;

É uma história muito antiga do tempo da escravidão”

 

Celebravam o enviado de Nzambi

Um deus-rei soberano, representante do sagrado

O divino rei preto coroado

 

Cantavam pelo casamento de Congo e Angola

Tocavam por uma tradição do lugar

Dançavam recriando o cortejo da nossa realeza

 

Um dia a profecia clareou nos olhos do povo Banto

Surgiu d’além das águas um rei que era branco

Passou a ser clamado como fosse um Manicongo

 

E aos poucos foi revelando a dor do desencanto

Levou preto além do mar

Ante os olhos de Kalunga

Preto então virou escravo, cristão, Francisco e Maria

 

Trouxe preto pra terra dourada

Preto foi pra mina cavar

Amarrado, açoitado

Preto chamou por rei do congá

 

Onde reluzia o ouro, nasceu o novo Congo

O Congado do Rosário deu a Chico coroa e trono

A monarquia do preto forro deu ao povo um novo sonho

 

Quando rei nasce do povo é do povo a sua voz

Ele é eu, ele é você, ele é cada um de nós

 

O Brasil ganhou o congado

Diversos reinos em um só Estado

Onde só reina preto devoto do Rosário, abençoado por são Benedito

E macumbeiro do roçado

 

Esse reinado que traz toda a sua companhia

Moçambique, Catopés, marinheiros e as daminhas

Todos saem para saudar os santos nas igrejinhas

 

“Oh Sinhá Rainha, não deixa seu povo chorar

Não deixa a coroa cair, não deixa essa festa acabar”

 

O congado é resistência de uma nobreza afogada

Mas preto tem que resistir pra se valer nessa jornada

Tem que ter um rei de cor para não deixar pra trás

Que além das ondas desse mar, preto era dono do lugar

 

E hoje em azul-e-branco meu congado é diferente

De um povo consciente da raiz de nossa gente, afrodescendente

Preservando a essência, celebrando a resistência nossa de cada dia

Cabuçu é negra feito a cor da noite, livre do açoite, raiz da folia

 

Proseado da história

 

1. Congangola

A mordaça da escravidão não silenciou os africanos que vieram para o Brasil. Resistência foi sua palavra de ordem, ainda que nem sempre proclamada em alto e bom som. Explorados em nosso chão, encontraram incontáveis maneiras de driblar as amarras físicas, psicológicas, sociais, culturais e religiosas, entre tantas outras. Vindos do outro lado do mar, fincaram em nosso chão suas raízes de maneira tão sorrateira e firme quanto a planta que, de pequena semente, se torna tronca forte, preso ao solo por um entremeado subterrâneo que cresceu sem ser visto – mas quando se viu, já estava lá.

Vestir-se de rei e rainha não é uma simples válvula de escape. É a manutenção de uma memória coletiva reavivada a cada celebração de seus costumes, crenças e valores culturais. E foi assim que inúmeros festejos e cortejos se espalharam por esse nosso Brasil. O congado é mais um deles, mas não é só mais um. É a memória do além-mar, de uma África que trouxeram em sua bagagem mental para que se tornasse viva no lado de cá do Atlântico. Cada vez que um negro se veste de rei, é o reino do Congo que ganha vida em solo brasileiro.

É assim que, no torce e contorce dos corpos negros dançantes e vibrantes, ganham vida os reis e rainhas com suas guardas, bandeiras e brasões em grandes cortejos. Os personagens são cheios de hierarquias e normas, como no antigo reino do Congo, nas bandas d’Angola, onde o mundo era dividido em natural e sobrenatural: o dos vivos (negros) e o dos mortos (brancos) eram separados pela água e o mar era o mundo do além, para o qual os vivos faziam rituais e oferendas.

E é o rei poderoso do Congo que ganha vida na Congada. Ele une os vivos aos ancestrais, comanda a chuva, as festas, a colheita e as leis. É quem diz o que pode e o que não pode. Símbolo de um povo, o rei é figura adorada. Ele é o povo. Ele é o antepassado. Ele é eu e você¸ é cada um de nós. Lá e cá, o rei é um deus vivo venerado.

 

2. Quem é Rei além das águas?

Quando imensas caravelas despontaram no horizonte trazendo criaturas brancas pelo mar, foram imediatamente recebidas como emissárias do mundo sobrenatural. Se entre os seres sobrenaturais havia um rei, ele era superior ao próprio rei do Congo, uma vez que reinava no sobrenatural. Assim, o rei de Portugal era encarado como o deus Nzambi Mpungu.

A relação entre os reinos de Portugal e do Congo, inicialmente pautada nesta compreensão sobrenatural do mundo, começou a sucumbir quando o comércio de escravos tomou grandes proporções. No início do século XVII, a exploração da mão-de-obra africana era a chave da economia portuguesa. Do mercado de Luanda, muitas Áfricas partiam para nunca mais voltar.

Aqueles que vieram para o Brasil trouxeram consigo a memória e a experiência da mistura cultural que já existia na sua terra. Eram batizados e ganhavam nomes de brancos – aqueles que de deuses ancestrais nada tinham, mas tanto enganaram com sua vil cobiça. Em uma dessas viagens, chamaram todos os homens de Francisco e todas as mulheres de Maria. Marcados com ferro em brasa, partiram entregues à própria sorte.

No caminho, viveram os horrores típicos dos navios negreiros: maus tratos, alimentação escassa, a morte de seus irmãos de sofrimento, o lançamento dos mais fracos ao mar. Os malditos brancos lançaram ao mar tantas vidas que nem mesmo a rainha Djalô e a princesa Itulu escaparam! O rei Galanga e seu filho Muzinga foram das poucas peças compradas daquela triste carga no mercado da Bahia. Os poucos que tiveram o mesmo destino foram espalhados pelas Minas Gerais.

Galanga encontrou outros congoleses, seus irmãos de nação. Galanga agora era Francisco. Francisco, Rei do Congo… além das águas, Chico Rei!

Em uma das passagens mais impressionantes da história colonial brasileira, a astúcia serviu como resistência: Chico e os seus escondiam pó de ouro entre os cabelos para poderem guardar e comprar a alforria. Com a ajuda de um padre, Chico comprou sua alforria e, encontrando uma pepita, também a de seu filho. Conseguiu comprar a própria mina e alforriou 35 negros em dois anos de trabalho. Para celebrar, deu uma festança com os alforriados e os congoleses em 6 de janeiro de 1747, que ficou conhecida como Congado do Rosário. Parecia naquele dia que estavam de volta ao Congo.

A festa foi se repetindo e elegendo seus reis e rainhas. Os reis do congado representam, simbólica e miticamente, a figura magnânima de Chico Rei.

 

3. O cortejo da congada

O cortejo se repete e traz na simbologia a memória viva da negritude, expressando sua ancestralidade em ritual. Quinze dias antes da festa, é hasteada a bandeira do aviso, branca, com a coroa de Nossa Senhora estampada. No primeiro dia, as bandeiras dos santos padroeiros – Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Nossa Senhora Aparecida, Santa Ifigênia e Nossa Senhora das Mercês – são hasteadas acompanhadas de cânticos e ladainhas. Benedito é figura de destaque: negro, hasteado, ereto, em destaque, elevado e livre.

Os reis são coroados e são a identidade máxima da festa. A procissão repleta de bandeiras e andores vai tomando as ruas. Já a festa é alegrada por caixas, tambores e sanfonas: são ternos de Moçambique e Catopé, cada um com seus adornos. Os marinheiros surgem para lembrar a travessia do Atlântico, enquanto o Vilão faz a guarda e marca o ritmo enfeitado em fitas coloridas.

E tudo termina numa grande celebração aos santos negros. Nossa Senhora do Rosário e São Benedito são celebrados e a festança adentra a noite. Quando amanhece, reis, rainhas, marinheiros, moçambiques e catopés retornam aos seus lares e se despem de seus panos coloridos. Voltam a ser os Franciscos e Marias desse nosso Brasil.

 

Aos compositores

Praticamos resistência cultural. Somos cultura popular, como a congada, o maracatu, o bumba-meu-boi, a ciranda de roda e todas as milhares de manifestações que o povo maravilhoso de nosso país inventou. Transbordem em seus sambas este sentimento de resistência e também de africanidade! Não esqueçam da negritude que corre em nossas veias!

O enredo não restringe o uso da primeira, da segunda ou da terceira pessoa. É possível cantá-lo em primeira pessoa (quando quem fala sou eu), como se o próprio congado ou o africano/afro-brasileiro contasse sua história. Também é possível utilizar a segunda pessoa (quando se fala para você/tu): cantar para o negro, para o congado, para o sentimento de negritude. E, por fim, é possível utilizar a terceira pessoa (quando se fala sobre ele/ela/eles/elas).

O texto é divido em três partes. O “início de conversa” faz as vezes de apresentação e passa uma ideia geral, mas não traz informação do enredo. Por este motivo, o que é dito nele não precisa ser mencionado no samba. O “versado da arte” é onde passamos a visão artística do enredo e deve ser a principal base para a composição. Já o “proseado da história” é quando esmiuçamos o enredo para que o “versado” possa ser totalmente compreendido por quem não conhece os detalhes do tema. A linguagem poética do texto pode ser incorporada aos sambas, mas estes não devem ser um “recorte e cola” do “versado da arte”, por exemplo.

Criem. Inventem. Ousem. Surpreendam-nos!

 

Enredo: André Rodrigues e Willian Tadeu

Colaboração: João Gustavo Melo

Agradecimento: João Gustavo Melo, Severo Luzardo, João Vitor Araújo, Daniel Targueta, Luana Maria, João Marcos, Luiz Martins, Diogo Ribeiro, Kamila Maria

 

Referências Bibliográficas

VASCONCELOS, Juliana de. Congado: uma celebração do hibridismo afro-brasileiro. 2007, 74 p. (Dissertação – Mestrado em Letras). Universidade Vale do Rio Verde – UNINCOR – Três Corações – MG.

COSTA, Patrícia Trindade Maranhão. As raízes da Congada: a renovação do presente pelos filhos do rosário. Tese de doutorado em Antropologia Social. Universidade de Brasília. Brasília, 2006.

GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: UCAM/Editora 34, 2001.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A festa do Santo Preto. 2° Ed. Rio de Janeiro: Funarte/ UFGO, 1985.